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Masculinidade tóxica: a realidade camuflada do cotidiano

A dificuldade que os homens têm de falar sobre seus sentimentos é cultural e afeta a todos, inclusive eles
Por: Karina Giannini

     As discussões sobre masculinidade tóxica ganham frequência nos últimos anos, reflexo do aumento da luta das mulheres. O feminismo faz repensar uma série de fatores relacionados à estrutura patriarcal na sociedade brasileira; entre eles, a violência diária sofrida por elas. Porém, mais do que colocar um holofote sobre o machismo, provocam a questão: “o que é ser homem?”, ou melhor, “o que é masculino?”.

      Algumas das respostas que os meninos têm para isso são criadas desde o berço, pela família e pelas demais instituições, de geração em geração, mas não passam de um papel de gênero imposto pela cultura patriarcal, na qual não é permitido aos homens ser quem eles são ou celebrar sua identidade: eles precisam corresponder ao papel e provar seu valor como homem.

      O "ser masculino” está associado à dominação e demonstração de poder, conceitos que se confundem com agressividade e autoritarismo – e isso ocorre de tal forma que leva os homens a crer que a dominação sobre as mulheres pode ser uma coisa boa para elas, benéfica, pois seu papel é prover e proteger. Assim, qualquer comportamento associado ao universo dito como feminino é subjugado. É importante reforçar, porém, que existem masculinidades, e elas se referem a uma subjetividade individual.

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Eu e o mundo

       Parte essencial para a compreensão das masculinidades é entender que cada um de nós tem sua própria subjetividade e a manifesta de formas diferentes. Trata-se de uma síntese singular e individual, que varia conforme as experiências de vida social e cultural. É aquilo que torna o que você é: único. Partindo desse ponto, já é possível ouvir as primeiras trincas nas imposições de papéis de comportamento para os gêneros.

        A subjetividade é construída diariamente, mesmo depois da vida adulta, na formação e transformação da personalidade. Guilherme Gomes, mestre em filosofia e professor de Psicologia da Comunicação na Belas Artes de São Paulo, afirma: “as informações sobre o que é ser homem que vamos colhendo ao longo da vida nos levam a uma conduta tóxica, do gibi da criança ao filme de adulto, o modelo de homem é muito parecido (...). Sem que eu perceba, essa masculinidade tóxica é alimentada e assimilada de forma naturalizada, reproduzimos isso mesmo quando não nos favorece”.

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      Entre os comportamentos decorrentes da dificuldade em assumir o papel de gênero estão a introspecção e a negação, este último, decorrente da tamanha naturalização da masculinidade tóxica, que ao contaminar os homens desde sempre, torna-se difícil de aceitar. “Olhar para o próprio defeito, para essa conduta tóxica que os homens têm, é muito difícil. Apontar o dedo para si mesmo, ‘eu’ me recuso a isso, porque isso fere a minha masculinidade. E eu continuo com isso, aproveitando os benefícios dessa conduta, mesmo que não me beneficie”, explica Guilherme.

Fonte:  Pinterest

     "Patriarcado é um sistema sociopolítico que prega que os homens são naturalmente dominante e superiores a tudo que é considerado inferior, principalmente as mulheres e, portanto, têm o direito de exercer essa dominância e comandar os mais fracos, sustentando esse poder através de diferentes formas de violência psicológica”. Além disso, como apresentado no livro, muitos homens acreditam que a palavra tem a ver com feminismo, algo apenas do universo delas e nada relevante para eles.

   Nos livros, autora ainda diz que eles sofrem de “estoicismo emocional”, ou seja, um homem é “mais homem” quando não sente nada, logo, a tendência é colocar para baixo do tapete, esquecer e esperar que o sentimento com o qual eles não conseguem lidar desapareça. Em palestras e entrevistas, como no trecho extraído do programa Speaking Freely, Hooks diz que, na cultura de dominação em que vivemos, escolher genuinamente amar é um ato heróico.

Homens têm sentimentos?

       Bell Hooks abordou a questão em seu livro “The Will To Change – Men, Masculinity and Love” (“A vontade de mudar: Homens, Masculinidade e Amor”). Nele, afirma que os meninos não são permitidos a sentir desde que nascem e que a nossa cultura influencia as pessoas a descartar a vida emocional deles. Mas isso não quer dizer que eles sejam incapazes de amar ou ter emoções: como não é o que se espera deles, os homens têm a tendência de esconder sua consciência emocional de outros homens por medo de serem repreendidos. Em suas palavras, retiradas diretamente do livro, afirma:

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Bell Hooks para o Speaking Freely, 2016

      Ronaldo Mathias, doutor em comunicação e arte e professor de Antropologia na Belas Artes de São Paulo, considera que a dimensão do sentimento sempre esteve ligada à vida privada, e que o espaço da nossa subjetividade é encarado como algo menor, que sempre foi associado às mulheres – reflexo de uma sociedade assumidamente e orgulhosamente patriarcal, citando Gilberto Freyre. Mathias, então, esclarece:

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     A criação que os meninos recebem não os educa a expressar sentimentos através de palavras: ou eles implodem, ou eles act out. O termo não tem uma tradução direta para a língua portuguesa, mas refere-se a “agir de forma errada por estar chateado ou bravo, geralmente de formas que não são percebidas durante a ação”, que é como a mídia de massa incentiva os meninos a lidar com suas emoções.

       Um menino é respeitado quando sabe se impor. A raiva age com um papel de amadurecimento, é o lugar que resta para esconder o medo e a dor que não permitidos de serem sentidos. Sentir muito durante a infância e se fechar durante a adolescência é estressante, gera confusão de identidade; no isolamento emocional, perde-se o senso de valor e a autoestima, afastando-o do que ele mais quer: ser amado e compreendido.

Reprodução e sofrimento ao mesmo tempo

       O machismo impõe padrões de comportamento, reprime aqueles que agem diferente, desiguala salários e mata homens e mulheres diariamente. É importante destacar que a masculinidade tóxica afeta a todos, inclusive os próprios homens. O tema foi abordado pelo documentário nacional “O silêncio dos homens”, de 2019. Eis alguns dados levantados pela obra, cuja pesquisa envolveu mais de 47 mil pessoas:

  • A cada 3 pessoas que morrem no Brasil hoje, 2 são homens.

  • Mais de 83% das mortes por homicídio e acidentes têm homens como vítima.

  • Homens cometem suicídio 4 vezes mais que as mulheres e vivem 7 anos a menos que elas (71 contra 78 anos).

  • 7 em cada 10 homens afirmam lidar com distúrbios emocionais em algum nível, hoje.

  • Homens são 95% da população prisional brasileira: maioria composta por jovens periféricos e sem figura paterna.

      “Isso fez com que os meninos não pensassem que pudessem se abrir, porque essa sempre foi uma postura das mulheres. É visto como uma coisa feminina. O homem que faz isso é visto como gay, logo, isso inibiu, ao longo dos séculos, uma postura masculina que enfrentasse isso (...). Ainda é um tabu entre os homens, como uma coisa proibida”.

       Se os sentimentos estão atrelados ao universo feminino, o que os homens têm permissão para sentir e expressar? Raiva. A raiva e a violência são os sentimentos mais propícios para mascarar a dor e esconder a angústia. Apenas quando muito pequenos é permitido aos meninos sentir emoções e se expressar. Conforme crescem, eles aprendem as “regras” e se afastam dessses comportamentos, temendo a comparação a uma mulher.

A perigosa raiva que os homens guardam

     Título do terceiro vídeo da minissérie “Entendendo Masculinidades” do canal homônimo de Leo Hwan, que utiliza como base o livro de Hooks para falar sobre sentimentos através de personagens da cultura pop, com o objetivo de desconstruir conceitos de masculinidade ideal impostos aos homens pela cultura patriarcal.

      Entender que a masculinidade tóxica afeta toda a sociedade, inclusive os próprios homens, é fundamental. A imposição de papéis de comportamento gera opressão e o sentimento de inadequação àqueles que não agem da maneira que o sistema exige, como expressado pelos dados. Tal pensamento é cultural e perpetuado pelas instituições e mídias de massa: o resultado é refletido na cultura pop, como abordado na reportagem “Precisamos falar sobre masculinidades”, tornando-se necessário estimular o debate sobre como as relações entre arte e realidade têm a ver com o ser humano.

Jornal-laboratório do curso de Jornalismo do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo - Edição: Dezembro de 2019

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