Precisamos falar sobre masculinidades
As relações entre arte e realidade contribuem para a construção e o entendimento da subjetividade
Por: Karina Giannini

Os meios de comunicação de massa têm um papel fundamental no processo de legitimar uma ordem, naturalizando o pensamento como se não houvesse nada de errado. “A arte questiona, informa, legitima”, o mestre em filosofia Guilherme Gomes, professor de Psicologia da Comunicação na Belas Artes de São Paulo, considera que a arte faz tudo e que não podemos pensar que seu papel é apenas criticar. A partir dessa questão e com o aumento da participação da cultura pop no cotidiano dos jovens, é importante repensar sobre como ocorrem as relações entre entretenimento e comportamento.
Qual o impacto do cinema e da cultura pop?
“O cinema influencia mesmo que você não vá. Falar que não tem influência é fechar o olho, simplificar demais (...). O cinema glorifica a violência desde sempre. É possível adorar esses filmes e estar longe de ser uma pessoa violenta. Creditar a filme a origem de todo comportamento é simplificar uma situação que é muito mais complexa”. – Ponto de vista de Guilherme Gomes.
“O cinema não é bom nem ruim, como qualquer outra tecnologia, mas ele dialoga com a sociedade que nós temos. (...) O cinema é reflexo de diretores, produtores e patrocinadores que veem isso de uma forma tranquila, então por isso que é difícil pensar em uma pluralidade de papéis para os homens no cinema: porque na sociedade a gente não tem”. – Ponto de vista de Ronaldo Mathias, doutor em comunicação e arte, e professor de Antropologia na Belas Artes de São Paulo.
“Todas as histórias da humanidade, das civilizações humanas, têm mitos que informam a identidade. Os nossos mitos são a cultura pop e, dentro dela, os super-heróis são um dos maiores do mundo. Super heróis formam a identidade de muitos meninos, me informou muito, contribui muito para a formação da minha identidade. O impacto é no sentido de que ele dita como um menino deve agir, o que faz dele um homem, alguém corajoso, porque um herói é aquele em que você se espelha, que você quer ser como”. – Ponto de vista de Leo Hwan, formado em cinema pela FAAP e criador do canal homônimo que fala sobre masculinidades e cultura pop, com o objetivo de desconstruir padrões e promover o debate sobre papéis de gênero e estereótipos de personagens.
Retomando a fala de Leo sobre os super-heróis e sua influência no comportamento dos meninos, Guilherme afirma que o modelo de herói que temos é aquele que “resolve as coisas na força” e a ideia de que é preciso um homem para resolver a situação. O pai que quer dar a última palavra, por exemplo, está “dando uma de herói”. Outra situação exemplificada por ele ocorreu em um dos filmes de Sherlock Holmes, interpretado por Robert Downey Jr., no qual o poder de raciocínio inigualável não foi o suficiente para manter o personagem como um herói no século XXI: “ele teve que virar um lutador ninja, teve que ser forte e bater nos inimigos”.
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Precisamos falar sobre “Coringa”
Estreado em 3 de outubro no Brasil e com direção de Todd Phillips, o filme “Coringa” suscitou diversas visões sobre como a violência, a masculinidade e a mulher são abordados. O personagem, na visão de Guilherme e Leo, teve um dia ruim que desencadeou todo o processo, levando ele a act out; Mathias, por outro lado, crê que dada a violência construída ao longo da vida de Arthur Fleck, seria difícil responder de outra forma, pois segundo ele, “somos produto do meio em que vivemos”.
Ronaldo também não detectou um problema com relação a representação das mulheres no filme, apesar de reconhecer que elas não estão em lugar de auto representação. Para ele, o diretor optou por focar no personagem que sofre violências desde a infância, o que leva outras questões a ficarem periféricas. Porém, Leo acredita em um ponto de vista diferente:
“As mulheres são veículos que o personagem do homem usa para se tornar um homem, o Coringa, e não só usa no sentido de empoderar: ele mata as mulheres. É através da violência de mulheres, inclusive, que ele consegue se tornar um “herói”, e isso é uma mensagem bem complicada. (...) Na minha visão, o diretor está se aproveitando de alguém com alguma deficiência mental para justificar ações violentas. Se o Coringa quisesse fazer um comentário real sobre saúde mental, eu não acho que fez, acho que é muito mais sobre como meninos e homens que não conseguem falar sobre emoções, act out”.
Leo ainda ilumina o fato de, no filme, o homem branco estar conduzindo uma revolução social, quando na verdade, historicamente, foram as mulheres negras que lideraram movimentos sociais em todos os âmbitos: “e nesse filme o homem branco mata a mulher negra (pelo que dá a entender, a vizinha), para ele liderar o movimento social de revolução contra os ricos”. Ele explica que sua visão teve referências em uma thread de uma mulher, não identificada, no Twitter, que precisou excluir sua conta devido a comentários de ódio recebidos ao expor sua opinião.
Pensar que o enredo se passa nos anos 80 e que, portanto, o papel feminino condiz, não justifica, “o filme está lançando agora, não é dos anos 80”. Tal visão pode ser justificada comparando com a série Stranger Things, que se passa no mesmo período: na segunda e principalmente na terceira temporada, são as personagens femininas – Eleven, Max, Joyce, Nancy e Robin – que fazem a trama avançar e resolvem os conflitos.

Fonte: Pinterest
Violência invisível aos olhos que não sofrem
A arte imita a vida, revela nossa realidade. Não perceber a violência em seus amplos sentidos, seja ela física ou não, no filme “Coringa” é um retrato de sua banalização: uma posição muito confortável, principalmente quando o espectador não é o alvo dela. A banalização ocorre ao ver o mundo apenas com a própria ótica, levando o espectador a se distanciar do filme com o argumento de que “não é para mim, é apenas ficção”. Ficção para alguns.
Há grupos que sofrem mais com a violência, outros convivem tanto com ela que a violência ensaiada do filme só parece mais bonita esteticamente. Ainda assim, Guilherme recupera que não torna o indivíduo mais violento, mas contribui para neutralizar a dinâmica da violência:
“A violência aparece por diversos motivos, a incapacidade de transformar em palavras aquilo que te incomoda é uma delas. Não faz parte da personalidade daquela pessoa resolver as coisas no diálogo, e isso desencadeia ações violentas, desde bater na mesa a bater em alguém. É um processo ideológico muito forte”.
As metamorfoses do cinema
Por muito tempo, para uma mulher ser considerada forte no meio audiovisual, ela precisava ter atributos ligados a “ser homem”, como se ela, por si só, não pudesse exercer sua feminilidade para ser forte. A mulher precisa ser a Sarah Connor (Exterminador do Futuro), não a Cinderela. Em paralelo, ainda faltam homens no cinema que utilizam outros poderes, que não a força, para triunfar e ser um herói por causa disso.
A desconstrução dos papéis de gênero no cinema está acontecendo; de forma lenta, mas está. Trata-se de um reflexo das transformações na sociedade: as lutas sociais dão voz aos grupos de minorias, eles querem se sentir representados e participar ativamente do processo criativo, processo este dominado por uma hegemonia masculina por trás das câmeras.
Diversificar os produtores de conteúdo permite um audiovisual que caminha para a inclusão e representatividade coletiva, ao mesmo tempo que desfigura a ideia do que é “ser homem” e “ser mulher”. Os desenhos animados são referência: Steven Universo, por exemplo, tem um herói cujo poder de defesa e empatia conseguem mudar o mundo e a si mesmo, criado pela animadora Rebecca Sugar. Fullmetal Alchemist é diferente de muitos shounens (mangás destinados ao público masculino, geralmente sobre lutas e personagens poderosos) em muitos aspectos, criado pela mangaká Hiromu Arakawa.

Fonte: Pinterest
Ryan Coogler, diretor e roteirista de "Pantera Negra", é outro exemplo de sucesso, justamente por ter um homem negro falando sobre o que é ser negro e com uma equipe poderosa ao seu lado. O herói de Wakanda fez história: além de ser o primeiro filme de super-herói a ser indicado ao Oscar de “Melhor Filme”, Ruth E. Carter foi a primeira mulher negra a ganhar o prêmio de “Melhor Figurino” e Hannah Beachler foi a primeira mulher negra a ser indicada e vencer o prêmio de “Melhor Design de Produção” na história da premiação.
Outro destaque vai para a série Como treinar o seu dragão, que apesar de ser dirigida por dois homens, é baseado no livro de Cressida Cowell. O protagonista Soluço subverte o ideal de masculinidade de sua vila para triunfar; sua principal força veio dos sentimentos e empatia para lidar com um problema diferente: o vilão, na verdade, nunca foi o dragão, mas a masculinidade tóxica.
Todos têm que falar
Não é porque o assunto é “homem” que as palavras das mulheres têm menos peso ou estão “fora do seu lugar de fala”. A expressão está associada a grupos que foram menorizados historicamente – mulheres, povos indígenas, homossexuais. Os homens fazem parte de um grupo hegemônico, maioria de imposição em diversas áreas, logo nunca tiveram problema com a representação, já que eles se auto representam.
A maioria das pesquisas relacionadas a masculinidades e masculinidade tóxica tem mulheres como protagonistas. Ronaldo Mathias esclarece: "o pesquisador ter 'autorização' para falar sobre qualquer tema, pois seu lugar de fala é como cientista, e além da dificuldade que os homens têm de falar sobre os seus sentimentos, é uma discussão muito recente, pois meninos não foram culturalmente educados a ter esse hábito".
Depois que Leo começou a assistir homens fazendo vídeos de cultura pop nos Estados Unidos e a participar de rodas de masculinidade aqui no Brasil, sentiu mudanças: “eu sempre tive um conflito muito grande dentro de mim, eu não sabia nomear (por conta de sua criação) e isso abriu bastante os meus olhos: ‘nossa, então quer dizer que eu não preciso ser desse jeito? Tudo bem eu ser de outro jeito?’ E eu comecei a querer falar sobre isso. Meu canal é uma extensão minha (...) então foi natural que eu acabei começando a falar sobre masculinidades”.
A vontade de mudar
As gerações mais novas têm tematizado e problematizado sobre as formas que elas se mostram socialmente. As mídias, de forma geral, provocam questionamentos, e a democratização da polifonia de personagens diversos ajuda a incluir o debate sobre masculinidade de forma mais abrangente. Lentamente, há uma conscientização maior dos meninos sobre essa questão.
Após Leo compreender os seus conceitos de masculinidades e utilizá-los no seu dia a dia, além de sentir mais liberdade para falar o que sente, adiciona “sinto que eu estou mais compatível comigo mesmo, e não que eu era quebrado. Eu tenho muito mais confiança no que eu faço, muito mais autoestima”.
Falar sobre masculinidades, sobre comportamentos tóxicos e patriarcado, colocar todos os pontos nos “is” e entender que há virgulas demais na subjetividade humana para uma mera simplificação é fundamental para entender a si mesmo como indivíduo. “Se eu não transformo em palavra, eu não percebo, e reproduzo, mesmo que eu venha a ser prejudicado”, como bem lembrado por Guilherme. Enfrentar essa conduta de forma reflexiva, através do diálogo, é a ponte para uma sociedade mais aberta, cujo retrato social da arte empodera masculinidades saudáveis e diferentes personalidades.

Todos são afetados e podem exercer ações de masculinidade tóxica. O Humanicidade criou uma lista de comportamentos que apesar de não parecerem, são reflexos da masculinidade tóxica. Clique aqui e teste sua porcentagem.
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