A Gamificação da Medicina e a Indústria de Jogos Independentes no Brasil
Evolução do Design de Jogos e das tecnologias como os óculos de Realidade Virtual passam a colaborar em tratamentos interativos de hospitais e da medicina
Por: Yan Heiji
Há muitos anos que a indústria dos games carrega um viés negativo consigo, não só por sua natureza de entretenimento, mas também pelas suas inúmeras polêmicas em discussões sobre a naturalização da violência, por exemplo. Em contrapartida, tecnologias provenientes da indústria dos jogos, como os óculos de Realidade Virtual, se provam cada vez mais úteis em outros âmbitos da produtividade humana, e um desses exemplos é sua participação na Medicina, que passou a se beneficiar cada vez mais com a fusão das inovações nos games com diversos procedimentos médicos.
Casos de maior destaque envolvem histórias como a da designer mineira Tricia Campos Araújo, que nasceu com a rara condição médica de “Fissura (ou Fenda) Labiopalatina”, também conhecida como Lábio Leporino (na qual o lábio superior se encontra ausente ou sem formação completa). Por conta disso, Tricia viveu sua infância cercada por médicos e fonoaudiólogos, realizando 15 cirurgias em apenas 8 anos de vida. Outros fatores, como o bullying, desmotivaram intensamente a continuidade do tratamento, fazendo com que ela se sentisse desconexa com os exercícios receitados pelo hospital que frequentava.
Hoje, casada com Bruno Tachinardi, o desenvolvedor de jogos, ajudou a criar a ferramenta interativa “Fofuuu”, uma espécie de jogo infantil que estimula crianças a se divertirem durante seus exercícios médicos. Funciona de forma simples: o jogador - a criança que está passando por tratamento - precisa concluir objetivos, como derrotar inimigos e proteger seu castelo, usando sua voz e pronunciando em voz alta sílabas específicas apontadas pelo programa, estimulando o desenvolvimento da destreza linguística contra suas dificuldades de fala.

Divulgação Oficial do aplicativo "Fofuuu" na Google Play Store

O sistema de Inteligência Artificial, com reconhecimento de fala, consegue detectar distintos tipos de pronúncia, já que cada criança se comunica de forma singular. Ele foi criado com o objetivo principal de reestruturar o funcionamento da reabilitação de crianças com problemas na comunicação, preocupação derivada de lugares como os Estados Unidos, onde cerca de 50% dos pacientes com doenças crônicas não seguem suas orientações médicas, o que leva a complicações no futuro.
Aplicativo ''Fofuuu''. Foto: Divulgação Oficial
“É uma transformação da terapia digital. A plataforma também auxilia os fonoaudiólogos a acompanhar o desenvolvimento das atividades e fornece relatórios sobre o que acontece em casa” afirma Bruno, em entrevista ao Jornal do Estado de S. Paulo. "Os jogos são voltados para crianças de 2 a 6 anos, mas alguns deles atingem crianças de até 12 anos diagnosticadas com autismo ou síndrome de Down que ainda estão em fase não verbal".
Segundo o projeto, ainda existem mais de 220 milhões de crianças com problemas na pronúncia de palavras em seus anos iniciais de vida. Esses problemas podem ser acarretados por diversos fatores, desde a condição da Fissura Labiopalatina a surdez, autismo e similares. (Matéria referenciada: “Games na Saúde Pública engajam e educam”, Jornal do Estado de S. Paulo, 29 de agosto de 2019).
Outro caso de destaque é o da enfermeira Fernanda Figueredo Chaves. A especialista em Saúde Coletiva afirma que é importante manter o foco no engajamento do paciente durante os tratamentos de Diabetes Tipo 1. Em entrevista ao Jornal do Estado de S. Paulo, Fernanda diz que “a diabetes exige que as pessoas tenham disciplina para controlar a glicemia. É importante praticar exercícios e vigiar a dieta.”
Com a apresentação do projeto AGITO, Fernanda conquistou o 1º lugar no Prêmio Inova Saúde Paraná, com o tema “Tecnologias da Informação e Comunicação na Saúde”, durante o 3º Congresso Paranaense de Saúde Pública, em 2016. O “Agente Interativo Móvel” foi criado com foco na melhoria de práticas de autocuidado das crianças e adolescentes com a doença, resultando na promoção de um melhor controle glicêmico e monitoramento do metabolismo pessoal.
Fernanda também diz que “uma novidade do projeto é envolver a parte emocional. A gente sabe que estados como tristeza, raiva, medo e alegria influenciam a glicemia também, então interagimos com o usuário para que ele diga como está se sentindo e orientamos as ações a partir daí. Controlando a glicemia, o adolescente, através de seu avatar no aplicativo, vai ganhando acessórios e gadgets no jogo.” Ademais, este tipo de interação intrapessoal, exemplificado por Fernanda, poderá possibilitar o desenvolvimento de processos de tratamento customizados às necessidades únicas de cada paciente em sistemas mais complexos, desenvolvidos futuramente.
É necessário ressaltar, também, a importância de eventos de startups e exposições de jogos “indies”, como o BIG Festival (ou Brasil Independent Games), que ocorre anualmente em junho e reúne diversos desenvolvedores e investidores para o possível financiamento de projetos únicos produzidos em áreas diversas do território nacional, incluindo empresas do Sudeste, Sul e até mesmo Nordeste e Centro-Oeste.

Outro projeto de destaque foi o “Atrium”, da empresa nacional MedRoom. Nele, o jogador interage com uma simulação de um corpo humano, em Realidade Virtual, dentro de seu próprio “laboratório”. Através dos órgãos manipuláveis e da seleção de diversos sistemas fisiológicos do corpo humano, o jogo é utilizado para estudos da anatomia humana, sendo inclusive adotado na Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein e no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - que é o maior complexo hospitalar da América Latina - para o treinamento de formação dos médicos.
Reprodução (Medroom/Atrium)
“O laboratório é recheado de ferramentas, como o criador de aulas, no qual professores possuem autonomia e liberdade para guiar alunos de acordo com as demandas de cada aula. Se a base anatômica de um assunto for relevante, ele pode ser apresentado e discutido no Atrium”, explica Vinicius Gusmão, cofundador e CEO da MedRoom, em entrevista ao Yahoo Finanças.

Imagem do jogo ''Artrium'', onde o jogador pode analisar frações dos sistemas do corpo humano. Foto: Universidade da Basileia
Em setembro deste ano, o Hospital das Clínicas, no Distrito Inova HC, começou a implementar startups similares em seu próprio laboratório de “telemedicina”, com a finalidade de simular situações do cotidiano hospitalar com as novas tecnologias oferecidas. Giovanni Guido Cerri, presidente do Conselho de Inovação do Hospital das Clínicas (HCFMUSP), também acrescenta: “o que é desenvolvido em inovação pode ajudar toda a população. O centro de inovação busca identificar potenciais produtos. Antigamente, a tecnologia significava aumento de custos, mas, por exemplo, um módulo de inteligência artificial pode trazer mais eficiência e diagnósticos precisos. E quase todas as especialidades vão se beneficiar.”
Em suma, pode-se dizer que a indústria de videogames está lentamente transcendendo as barreiras do entretenimento convencional, passando a integrar partes de sua expansão tecnológica no nosso dia a dia, e está a torná-la cada vez mais imersiva e elaborada na simulação de realidades alternadas; tudo isso vindo a trazer o mito do “Homo Ludens” à realidade da humanidade do século XXI.
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Caso você estiver interessado em ver um pouco melhor como os jogos Fofúuu e Atrium funcionam na prática, o Humanicidade também traz um vídeo para explicar mais detalhadamente como os dois programas interativos são aplicados no cotidiano dos profissionais da medicina, mostrando suas funções específicas, explicando sobre o seu design e como suas interfaces visuais se comunicam com cada público-alvo; tudo isso, você encontra de forma resumida no vídeo abaixo: